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Como está a sua manutenção?

Foto do escritor: Jéssica MilatoJéssica Milato

Acordei cedinho, um pouco contra a minha natureza de libriana, amante do conforto das cobertas. No mecânico, a estratégia era clara: chegar cedo, antes das portas se abrirem, para garantir que seria uma das primeiras atendidas.

Meu carro precisava de atenção — troca das velas, algo que, para mim, soava quase místico, como se o motor também precisasse de uma faísca para seguir adiante.

Mal sabia eu que a manutenção do dia não seria apenas para o motor.

Esperei poucos minutos até que o Valmir, o mecânico, surgiu com o sorriso que parece grudado no rosto. Ele me cumprimentou com a mesma energia de quem já tomou três cafés e, antes que eu pudesse falar sobre o carro, fez um convite inesperado:

— Vamos participar do nosso ritual da gratidão?

A frase veio como quem oferece um café, casual e calorosa.

Curiosa, aceitei sem saber bem no que estava me metendo.

Fomos para os fundos da oficina, onde a equipe já formava um círculo. Homens de uniforme surrado, mãos marcadas de graxa, um cenário tão mecânico e tão humano que me senti numa dessas histórias que a gente ouve e depois transforma em metáfora.

— Todo dia, antes de abrir, a gente faz isso aqui — explicou Valmir. — Cada um fala três coisas pelas quais é grato hoje. Não importa o tamanho. Coisa simples ou grandiosa, tanto faz. O que importa é lembrar.

Um exercício simples e despretensioso, como apertar um parafuso. Só que apertava o coração.

Começaram. Um agradeceu pela saúde. Outro, pelo pão com manteiga que a esposa preparou para o café da manhã. Pequenos fragmentos de vida compartilhados com a mesma seriedade de quem confessa um segredo.

Quando chegou minha vez, fiquei desconcertada.

Gratidão, assim, ao vivo e sem ensaio, é um exercício desafiador.

Soltei o que veio à mente:

— Sou grata pela saúde, pelo meu filho Alexsander, pela Bianca, que sempre me lembra que a vida não é um morango, mas ainda assim tem seu doce... e por estar aqui com vocês agora.

Os outros compartilharam motivos que eram, ao mesmo tempo, banais e profundos.

Fiquei ouvindo, fascinada, enquanto o cheiro do óleo misturava-se ao das histórias.

Ao fim de cada agradecimento, as palmas. Fortes e intensas. Talvez tivessem a mesma sensação que eu: um momento simples, mas profundo, como se estivéssemos reabastecendo algo dentro de nós, mais importante que gasolina.

Naquele instante, percebi que gratidão é como um motor.

Pequenas faíscas que fazem a vida funcionar. Não precisa ser grandioso. Pode ser um olhar carinhoso, uma mensagem inesperada, um nascer do sol que você conseguiu ver sem pressa.

Gratidão é o que nos alinha ao presente, o que nos ensina que, apesar de tudo, ainda há o que celebrar.

Saí de lá com mais do que velas novas no carro. Saí com o tanque emocional cheio.

E, enquanto dirigia de volta, me peguei pensando em outras coisas pelas quais sou grata: o riso despretensioso da Bianca, o cheiro de café passado na hora, as manhãs em que o mundo parece menos apressado, pelo meu filho que terminou o ensino médio.

A lição foi clara.

A vida não é perfeita, mas também não precisa ser, para ser bonita. E, às vezes, é no chão de uma oficina que a gente aprende o que realmente importa.

Então, aqui vai minha sugestão: crie seu próprio ritual da gratidão.

Não precisa de nada além de um instante e de um coração aberto.

E, se por acaso, um dia você passar pela oficina do Valmir, entre no círculo. Diga suas três coisas. Quem sabe, como eu, você saia de lá com mais do que entrou.


 

Texto escrito dia 26/11 após levar meu carro mais uma vez para o Valmir.

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