O domingo amanheceu com a suavidade de uma página de livro virada. Era o dia da celebração dos 80 anos da tia da minha mãe, uma mulher que, com seu hábito (sim, ela é freira) e sua doçura, parece guardar segredos de uma serenidade que só o tempo, ou talvez a fé, consegue trazer. Era um encontro familiar raro, desses que a vida moderna faz parecer improvável, mas que, quando acontecem, trazem consigo uma mistura de reencontros e recomeços.
Chegamos cedo. A casa pulsava com vozes de primos que um dia foram crianças, mas agora traziam cabelos brancos ou histórias que não couberam na distância. Reconheci alguns, mas com outros a memória hesitou, tropeçou. “Você não é a filha da Vera?” Eu sorria, fazia que sim. Eram rostos que haviam pertencido à minha infância, mas que o tempo transformou em contornos quase esquecidos. Havia um misto de alegria por vê-los e estranhamento por perceber como a vida nos afastou de maneira tão sutil que só agora, no reencontro, percebemos e isso doía.
Minha mãe parecia flutuar entre as conversas. Abraçava tios e primos com a leveza de quem reencontra partes perdidas de si mesma. Seus olhos brilhavam, a felicidade genuína em vê-los era como um bálsamo. Ela comentava histórias de infância com os irmãos e primos. Relembrava histórias velhas que ainda arrancavam risadas. Era bonito de se ver, uma felicidade tão palpável que parecia que eu nunca havia presenciado.
E então veio a pergunta. Uma daquelas perguntas que chegam leves, despretensiosas, mas que, quando nos tocam, desarrumam algo por dentro.
“E seu pai? Continua do mesmo jeito?”
Respondi com a pressa que a ocasião pedia: “Sim, está do mesmo jeito.”
Mas no banho, agora à noite, essa pergunta voltou. Que jeito? Que jeito é “o mesmo jeito”, afinal?
Meu pai… Como colocá-lo em palavras? Ele é, para mim, o homem mais inteligente que conheço. Sabe de tudo um pouco, como uma enciclopédia viva que me ensinou não apenas a responder perguntas, mas a perguntar mais e mais. Foi ele quem me apresentou ao bom gosto musical, quem me explicou o encanto das letras da Jovem Guarda e das melodias do Bee Gees.
E foi ele quem me ajudou a escrever minha primeira história.
Talvez ele nem se lembre daquela noite na varanda da casa que morávamos em Presidente Venceslau, vizinhos da Dona Geralda, mas eu nunca esqueci. Eu havia lido um livro sobre uma menina chamada Celeste que viajava à lua, e decidi que escreveria algo parecido. Ele, com seu jeito, sentou-se comigo e começamos. Uma palavra aqui, outra ali, e juntos criamos uma pequena história. É uma memória simples, mas tão doce que ainda aquece.
Esse era o jeito que recordo do meu pai: criativo, curioso e cheio de vida.
Mas esse não é o jeito que a vida quis deixar para ele. Hoje, o jeito que se vê é outro. É o jeito de alguém que perdeu partes de si mesmo para um copo que parece não esvaziar nunca. É o jeito de quem luta, todos os dias, contra algo maior do que ele, maior do que todos nós.
E dói. Dói porque o vejo ser resumido a isso, a “continuar do mesmo jeito.” E não é um jeito bom.
Amar alguém que o tempo desgastou é como segurar uma peça de cristal rachada: você sabe que é preciosa, sabe que o que foi um dia ainda está lá, em algum lugar, mas as rachaduras doem nas mãos.
É difícil. Difícil aceitar que a pessoa que me ensinou a imaginar mundos inteiros agora vive em um mundo pequeno, reduzido.
Difícil lidar com o olhar das pessoas, que o enxergam apenas pelo que perdeu, e não pelo que ainda carrega.
Esse encontro familiar foi um mosaico de emoções. Foi ver minha mãe tão feliz entre os seus, mas foi também carregar essa reflexão amarga sobre o meu pai. Não sei se ele se lembra da Celeste, da varanda, do que criamos juntos. Mas eu lembro. Eu lembro do pai que ele foi e que, para mim, ainda é, mesmo quando o mundo insiste em reduzir sua essência.
Dói vê-lo assim. Dói, porque o amor que sinto é maior que qualquer rachadura.
E é esse amor que me faz lembrar que, embora o jeito de hoje seja um fardo, o jeito que ele me deu — o de criar, o de sonhar, o de perguntar — é algo que jamais se perderá.
E isso, por mais que doa, também é o que me mantém firme.
Texto escrito no dia 21/10, após chegar do aniversário da tia Irmã Célia.
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