top of page

Uma hora a gente cansa de ser âncora

Foto do escritor: Jéssica MilatoJéssica Milato

A vida tem essa mania de nos colocar papéis que nem sempre escolhemos.

Para alguns de nós, o papel de âncora parece vir por decreto silencioso.

Somos o porto seguro, o lugar onde os outros aportam suas tempestades, onde o vento deixa de soprar e o mar se acalma.

É bonito, claro. É importante. Mas, com o tempo, a âncora enferruja.

E, um dia, ela cansa.

Ser âncora é segurar firme enquanto todos à nossa volta navegam.

É ser o ponto de estabilidade nos relacionamentos, a pessoa que sempre tem uma palavra de conforto, que organiza o caos, que oferece colo e ouvidos. É ser o amigo que está sempre disponível, o familiar que apaga os incêndios, o parceiro que equilibra a balança.

É nobre, dizem.

É necessário, dizem.

Mas ser âncora, em excesso, é também solitário.

Porque, enquanto seguramos os barcos dos outros, nunca somos o barco da chegada. Nunca somos aquele que alguém espera ansiosamente no horizonte, velas brancas desfraldadas, trazendo consigo histórias novas, aventuras frescas, vida.

Somos o que fica, o que espera. O que recebe.

E, de tanto segurar, uma hora a gente cansa.

Cansa de ser sempre o que entende, o que perdoa, o que espera pelo barco que prometeu voltar.

A âncora, afinal, também sonha com o mar.

Com o movimento.

Com a liberdade de ser o barquinho a vela que se deixa levar pelo vento, sem pressa de aportar em lugar algum.

Isso é especialmente cruel.

Você segura as velas, ajusta as cordas, estabiliza o barco do outro. Mas, e o seu?

Quem olha para o seu mar revolto?

Quem nota suas rachaduras, os nós desfeitos, o casco que ameaça ceder?

Ser o alicerce é bonito até o momento em que você percebe que nunca ninguém lhe construiu uma base sólida.

Na família, a âncora é aquela que ouve as histórias de todos, mas nunca tem tempo de contar as suas.

É quem organiza as festas, mas é raramente surpreendida com uma.

Quem está disponível, mas nunca é procurada fora das emergências.

O afeto vira dependência disfarçada, e isso corrói.

Até nas amizades, ser âncora cansa. Você é o ponto de apoio, mas quando desaba, quem segura o peso?

Quantas vezes aquele “como você está?” realmente significa o que deveria significar?

E então, um dia, no meio de mais uma tempestade que não é sua, algo dentro de você se desprende.

A âncora se solta. Ela decide, finalmente, que também quer flutuar. Que também merece se deixar levar.

É nesse momento que você entende que ser barco não é egoísmo. É necessidade.

Ser barco é permitir-se partir, navegar, errar o caminho.

É encontrar portos que não sejam apenas o seu.

É entender que você não tem que estar disponível para todos, o tempo todo, e que suas tempestades também precisam de espaço.

Uma hora a gente cansa de ser âncora.

Cansa de estar sempre no mesmo lugar, esperando, segurando, suportando.

E percebe que ser um barquinho a vela, leve, livre, é também um jeito de existir.

Que podemos partir sem culpa, navegar sem destino, e que isso não nos faz menos importantes.

Porque, no fim, o mar é vasto, e há ventos para todos.

A âncora pode descansar.

E o barco, finalmente, pode andar por aí.

 

Texto criado após uma crise existencial...

6 visualizações1 comentário

Posts recentes

Ver tudo

1 komentārs


Adriano Silva
Adriano Silva
2024. g. 27. nov.

Como sempre, perfeito texto. Este ficou bem forte, me vi nele.

Patīk
bottom of page