A vida tem essa mania de nos colocar papéis que nem sempre escolhemos.
Para alguns de nós, o papel de âncora parece vir por decreto silencioso.
Somos o porto seguro, o lugar onde os outros aportam suas tempestades, onde o vento deixa de soprar e o mar se acalma.
É bonito, claro. É importante. Mas, com o tempo, a âncora enferruja.
E, um dia, ela cansa.
Ser âncora é segurar firme enquanto todos à nossa volta navegam.
É ser o ponto de estabilidade nos relacionamentos, a pessoa que sempre tem uma palavra de conforto, que organiza o caos, que oferece colo e ouvidos. É ser o amigo que está sempre disponível, o familiar que apaga os incêndios, o parceiro que equilibra a balança.
É nobre, dizem.
É necessário, dizem.
Mas ser âncora, em excesso, é também solitário.
Porque, enquanto seguramos os barcos dos outros, nunca somos o barco da chegada. Nunca somos aquele que alguém espera ansiosamente no horizonte, velas brancas desfraldadas, trazendo consigo histórias novas, aventuras frescas, vida.
Somos o que fica, o que espera. O que recebe.
E, de tanto segurar, uma hora a gente cansa.
Cansa de ser sempre o que entende, o que perdoa, o que espera pelo barco que prometeu voltar.
A âncora, afinal, também sonha com o mar.
Com o movimento.
Com a liberdade de ser o barquinho a vela que se deixa levar pelo vento, sem pressa de aportar em lugar algum.
Isso é especialmente cruel.
Você segura as velas, ajusta as cordas, estabiliza o barco do outro. Mas, e o seu?
Quem olha para o seu mar revolto?
Quem nota suas rachaduras, os nós desfeitos, o casco que ameaça ceder?
Ser o alicerce é bonito até o momento em que você percebe que nunca ninguém lhe construiu uma base sólida.
Na família, a âncora é aquela que ouve as histórias de todos, mas nunca tem tempo de contar as suas.
É quem organiza as festas, mas é raramente surpreendida com uma.
Quem está disponível, mas nunca é procurada fora das emergências.
O afeto vira dependência disfarçada, e isso corrói.
Até nas amizades, ser âncora cansa. Você é o ponto de apoio, mas quando desaba, quem segura o peso?
Quantas vezes aquele “como você está?” realmente significa o que deveria significar?
E então, um dia, no meio de mais uma tempestade que não é sua, algo dentro de você se desprende.
A âncora se solta. Ela decide, finalmente, que também quer flutuar. Que também merece se deixar levar.
É nesse momento que você entende que ser barco não é egoísmo. É necessidade.
Ser barco é permitir-se partir, navegar, errar o caminho.
É encontrar portos que não sejam apenas o seu.
É entender que você não tem que estar disponível para todos, o tempo todo, e que suas tempestades também precisam de espaço.
Uma hora a gente cansa de ser âncora.
Cansa de estar sempre no mesmo lugar, esperando, segurando, suportando.
E percebe que ser um barquinho a vela, leve, livre, é também um jeito de existir.
Que podemos partir sem culpa, navegar sem destino, e que isso não nos faz menos importantes.
Porque, no fim, o mar é vasto, e há ventos para todos.
A âncora pode descansar.
E o barco, finalmente, pode andar por aí.
Texto criado após uma crise existencial...
Como sempre, perfeito texto. Este ficou bem forte, me vi nele.